a OBSERVATÓRIO DA PAX: março 2019

terça-feira, 5 de março de 2019

Comissão Nacional Justiça e Paz propõe reflexão para a Quaresma

FAZER A PÁSCOA
Reflexão Quaresmal de 2019 da Comissão Nacional Justiça e Paz

Com esta citação de S. Paulo aos Romanos o Papa Francisco inicia a sua Mensagem para a Quaresma de 2019. Fala na Quaresma como um «itinerário de preparação» para a Páscoa que, ano após ano, percorremos. O dicionário diz-nos, entre outras palavras, que “preparação” significa “obra prévia”. Há, portanto, que fazer alguma coisa para podermos entrar na Páscoa. As “cinzas” significam que somos pó e em pó nos havemos de tornar. São um chamamento à conversão. Francisco alerta-nos para a força negativa do pecado e para a possibilidade de perdão, insistindo que «a harmonia gerada pela redenção» está por alcançar. «Convertei-vos!» - afirma João Batista (cf Mt 3,2).

A Encíclica Laudato Sí continua a ser a força inspiradora para a mensagem do Papa. Respeitai e convertei a criação! Reparai a criação! Francisco convida-nos a não desperdiçar “este tempo favorável” da Quaresma. Ao desejar que tornemos este tempo favorável, a Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) elabora um conjunto de propostas que deixa à consideração dos cristãos e de todos os homens e mulheres de boa vontade.


1. Exploração/respeito pela criação

Etimologicamente, a palavra “respeito” corresponde à «ação de olhar para trás: consideração, atenção, acolhida, refúgio». Que fizemos da criação? O ser humano não é o senhor absoluto da criação, usando-a apenas em benefício próprio. Vivemos na permanente ameaça das alterações climáticas causadas pela sofreguidão dos homens e das mulheres. Quem paga são os mais pobres, os menos protegidos, os mais vulneráveis. Estamos a transformar o jardim do Éden num deserto.

Prevalece a lei do mais forte sobre o mais fraco. Citando o Apocalipse o Papa afirma que a própria criação pode também “fazer Páscoa”: abrir-se para o novo céu e a nova terra (cf. Ap 21, 1). Trabalhemos para a Páscoa da criação.


2. Balancear Individual/coletivo

Urge ultrapassar «comportamentos destruidores do próximo e das outras criaturas – mas também de nós próprios –». A nossa sociedade individualista inscreve em nós uma auto-centração levando-nos a esquecer a nossa “circunstância”. Num movimento narcísico de contemplação de mim próprio/a esqueço o perigo de me deixar apaixonar pela minha imagem. Esqueço a real interdependência de todos os seres humanos. O “Outro” compele-me, responsabiliza-me, ajuda-me a descentrar de mim próprio. Partilhemos, «na alegria de um coração purificado». Sejamos solidários e partilhemos o que temos. Dar esmola para sair da insensatez de viver e acumular tudo para nós mesmos.


3. Direitos/responsabilidades

Este eu “autocentrado” esquece que não há direitos sem responsabilidades. Celebramos muito justificadamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Reafirmamo-la, mas ainda estamos longe de a cumprir em cada ser humano. Cedemos “à exploração da criação (pessoas e meio ambiente), movidos por aquela ganância insaciável que considera todo o desejo um direito e que, mais cedo ou mais tarde, acabará por destruir inclusive quem está dominado por ela” - afirma o Papa. Esquecemos que não há direitos sem responsabilidades. E a responsabilidade implica a atenção desvelada ao outro, a solidariedade, o movimento de apagamento da minha necessidade imediata para que o outro possa também usufruir da vida tal como eu usufruo.


4. Frugalidade/consumismo

A mensagem do Papa convida-nos a que reaprendamos o sentido do jejum. Jejuar, segundo o Papa é «aprender a modificar a nossa atitude para com os outros e as criaturas: passar da tentação de “devorar” tudo para satisfazer a nossa voracidade, à capacidade de sofrer por amor, que pode preencher o vazio do nosso coração».

Somos bombardeados pela publicidade. No Natal passado gastámos como há muito tempo não gastávamos. Pensamos que a felicidade está no consumo e consumimos desenfreadamente em busca de sentido, caminhando de desilusão em desilusão. Centramo-nos na satisfação imediata. Francisco fala «de uma intemperança, levando a um estilo de vida que viola os limites que a nossa condição humana e a natureza nos pedem para respeitar, seguindo aqueles desejos incontrolados». Como passar para o outro lado? Para o lado de uma partilha responsável, de uma atenta solidariedade, na consciência de que os bens são limitados e devem ser distribuídos por todos. Como levar uma vida mais frugal naquilo que comemos, que vestimos, no lazer, nas coisas que temos? Como sermos frugais na competição desenfreada que nos consome? Como “emagrecer”? Como ultrapassar esta lógica do tudo e imediatamente, do possuir cada vez mais? Como ensinamos a frugalidade aos nossos filhos? Como dar lugar ao Ser em vez do Ter?

Minimalismo aparece como uma nova palavra, principalmente entre pessoas que já se cansaram do consumismo desenfreado e agora prestam um pouco mais de atenção a coisas que o dinheiro não pode comprar, como a satisfação com a vida e a felicidade. Nesta Quaresma prestemos atenção a esta palavra e pensemos como podemos ser “minimalistas”.


5. Fechamento/Hospitalidade

Assistimos a um fechamento de fronteiras, a Europa isola-se nas suas muralhas intransponíveis. Constatamos, impotentes, o reacendimento de movimentos nacionalistas. Face a estes movimentos, os cristãos são convidados à hospitalidade. S. Paulo, na carta aos Hebreus lembra: «Não vos esqueçais da hospitalidade, porque por ela, alguns, não o sabendo, hospedaram anjos». Hospitalidade implica receber o outro como igual: no acolhimento do outro eu aprendo a reconhecer-me a mim próprio/a. A hospitalidade é incondicional e implica uma disposição interior aberta e irrestrita. Criemos cadeias de solidariedade includentes, abertas aos migrantes, aos refugiados que buscam uma vida melhor e mais segura. No acolhimento do outro eu aprendo a reconhecer-me a mim próprio/a. Deixemos que uma hospitalidade global prevaleça no nosso quotidiano.


6. Política/Serviço ao bem público

Política tem a sua etimologia na palavra polis, que significa cidade. Torna-se necessário aprendermos a viver na polis, na comunidade. A política quer dizer servir o bem público, o bem de todos. Constatamos como a corrupção – na política como em outros setores – mina qualquer sociedade democrática. Participemos na política, mas de um modo diferente, porque, enquanto cristãos, queremos ser responsáveis pelo bem comum, pela partilha de bens e recursos, pela salvaguarda do interesse colectivo. Construamos alternativas de participação. Na «alegria de um coração purificado» trabalhemos para uma política limpa, transparente, cristalina como um espelho.


7. Rezar!

Entrar no deserto. Saborear o silêncio. Parar para contemplar. Respirar simplesmente. Deixarmo-nos invadir pelo belo, pelo bom, pelo justo. Permanecer em atenta escuta, olhando o horizonte mais amplo das nossas vidas. Balbuciar o nome de Deus, do inominável. O Papa convida-nos a «restaurar a nossa fisionomia e o nosso coração de cristãos, através do arrependimento, da conversão e do perdão». Que sentido tem o perdoar em tempo de Quaresma? Que entendemos por reconciliação? Rezemos uns pelos outros. Rezemos pelo Papa. Rezemos pela Igreja. E, sim, ajoelhemos face ao Mistério.

No entanto sejamos alegres. Que ninguém saiba que jejuamos, que nos privamos em favor dos outros. Que a nossa alegria irradie.

«Voltemo-nos para a Páscoa de Jesus!» - interpela finalmente o Papa, «voltemo-nos para o horizonte da Ressurreição». Acreditemos no milagre da Ressurreição. Estendamos a mão ao milagre:

Não deixes o cansaço instalar-se.
Em vez disso silenciosamente
como a um pássaro
Estende a mão ao milagre
(Hilde Domin)

CNJP

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segunda-feira, 4 de março de 2019

Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2019

«A criação encontra-se em expetativa ansiosa,
aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 19)


Queridos irmãos e irmãs!

Todos os anos, por meio da Mãe Igreja, Deus «concede aos seus fiéis a graça de se prepararem, na alegria do coração purificado, para celebrar as festas pascais, a fim de que (…), participando nos mistérios da renovação cristã, alcancem a plenitude da filiação divina» (Prefácio I da Quaresma). Assim, de Páscoa em Páscoa, podemos caminhar para a realização da salvação que já recebemos, graças ao mistério pascal de Cristo: «De facto, foi na esperança que fomos salvos» (Rm 8, 24). Este mistério de salvação, já operante em nós durante a vida terrena, é um processo dinâmico que abrange também a história e toda a criação. São Paulo chega a dizer: «Até a criação se encontra em expetativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 19). Nesta perspetiva, gostaria de oferecer algumas propostas de reflexão, que acompanhem o nosso caminho de conversão na próxima Quaresma.


1. A redenção da criação

A celebração do Tríduo Pascal da paixão, morte e ressurreição de Cristo, ponto culminante do Ano Litúrgico, sempre nos chama a viver um itinerário de preparação, cientes de que tornar-nos semelhantes a Cristo (cf. Rm 8, 29) é um dom inestimável da misericórdia de Deus.

Se o homem vive como filho de Deus, se vive como pessoa redimida, que se deixa guiar pelo Espírito Santo (cf. Rm 8, 14), e sabe reconhecer e praticar a lei de Deus, a começar pela lei gravada no seu coração e na natureza, beneficia também a criação, cooperando para a sua redenção. Por isso, a criação – diz São Paulo – deseja de modo intensíssimo que se manifestem os filhos de Deus, isto é, que a vida daqueles que gozam da graça do mistério pascal de Jesus se cubra plenamente dos seus frutos, destinados a alcançar o seu completo amadurecimento na redenção do próprio corpo humano. Quando a caridade de Cristo transfigura a vida dos santos – espírito, alma e corpo –, estes rendem louvor a Deus e, com a oração, a contemplação e a arte, envolvem nisto também as criaturas, como demonstra admiravelmente o «Cântico do irmão sol», de São Francisco de Assis (cf. Encíclica Laudato si’, 87). Neste mundo, porém, a harmonia gerada pela redenção continua ainda – e sempre estará – ameaçada pela força negativa do pecado e da morte.


2. A força destruidora do pecado

Com efeito, quando não vivemos como filhos de Deus, muitas vezes adotamos comportamentos destruidores do próximo e das outras criaturas – mas também de nós próprios –, considerando, de forma mais ou menos consciente, que podemos usá-los como bem nos apraz. Então sobrepõe-se a intemperança, levando a um estilo de vida que viola os limites que a nossa condição humana e a natureza nos pedem para respeitar, seguindo aqueles desejos incontrolados que, no livro da Sabedoria, se atribuem aos ímpios, ou seja, a quantos não têm Deus como ponto de referência das suas ações, nem uma esperança para o futuro (cf. 2, 1-11). Se não estivermos voltados continuamente para a Páscoa, para o horizonte da Ressurreição, é claro que acaba por se impor a lógica do tudo e imediatamente, do possuir cada vez mais.

Como sabemos, a causa de todo o mal é o pecado, que, desde a sua aparição no meio dos homens, interrompeu a comunhão com Deus, com os outros e com a criação, à qual nos encontramos ligados antes de mais nada através do nosso corpo. Rompendo-se a comunhão com Deus, acabou por falir também a relação harmoniosa dos seres humanos com o meio ambiente, onde estão chamados a viver, a ponto de o jardim se transformar num deserto (cf. Gn 3, 17-18). Trata-se daquele pecado que leva o homem a considerar-se como deus da criação, a sentir-se o seu senhor absoluto e a usá-la, não para o fim querido pelo Criador, mas para interesse próprio em detrimento das criaturas e dos outros.

Quando se abandona a lei de Deus, a lei do amor, acaba por se afirmar a lei do mais forte sobre o mais fraco. O pecado – que habita no coração do homem (cf. Mc 7, 20-23), manifestando-se como avidez, ambição desmedida de bem-estar, desinteresse pelo bem dos outros e muitas vezes também do próprio – leva à exploração da criação (pessoas e meio ambiente), movidos por aquela ganância insaciável que considera todo o desejo um direito e que, mais cedo ou mais tarde, acabará por destruir inclusive quem está dominado por ela.


3. A força sanadora do arrependimento e do perdão

Por isso, a criação tem impelente necessidade que se revelem os filhos de Deus, aqueles que se tornaram «nova criação»: «Se alguém está em Cristo, é uma nova criação. O que era antigo passou; eis que surgiram coisas novas» (2 Cor 5, 17). Com efeito, com a sua manifestação, a própria criação pode também «fazer páscoa»: abrir-se para o novo céu e a nova terra (cf. Ap 21, 1). E o caminho rumo à Páscoa chama-nos precisamente a restaurar a nossa fisionomia e o nosso coração de cristãos, através do arrependimento, a conversão e o perdão, para podermos viver toda a riqueza da graça do mistério pascal.

Esta «impaciência», esta expetativa da criação ver-se-á satisfeita quando se manifestarem os filhos de Deus, isto é, quando os cristãos e todos os homens entrarem decididamente neste «parto» que é a conversão. Juntamente connosco, toda a criação é chamada a sair «da escravidão da corrupção, para alcançar a liberdade na glória dos filhos de Deus» (Rm 8, 21). A Quaresma é sinal sacramental desta conversão. Ela chama os cristãos a encarnarem, de forma mais intensa e concreta, o mistério pascal na sua vida pessoal, familiar e social, particularmente através do jejum, da oração e da esmola.

Jejuar, isto é, aprender a modificar a nossa atitude para com os outros e as criaturas: passar da tentação de «devorar» tudo para satisfazer a nossa voracidade, à capacidade de sofrer por amor, que pode preencher o vazio do nosso coração. Orar, para saber renunciar à idolatria e à autossuficiência do nosso eu, e nos declararmos necessitados do Senhor e da sua misericórdia. Dar esmola, para sair da insensatez de viver e acumular tudo para nós mesmos, com a ilusão de assegurarmos um futuro que não nos pertence. E, assim, reencontrar a alegria do projeto que Deus colocou na criação e no nosso coração: o projeto de amá-Lo a Ele, aos nossos irmãos e ao mundo inteiro, encontrando neste amor a verdadeira felicidade.

Queridos irmãos e irmãs, a «quaresma» do Filho de Deus consistiu em entrar no deserto da criação para fazê-la voltar a ser aquele jardim da comunhão com Deus que era antes do pecado das origens (cf. Mc 1,12-13; Is 51,3). Que a nossa Quaresma seja percorrer o mesmo caminho, para levar a esperança de Cristo também à criação, que «será libertada da escravidão da corrupção, para alcançar a liberdade na glória dos filhos de Deus» (Rm 8, 21). Não deixemos que passe em vão este tempo favorável! Peçamos a Deus que nos ajude a realizar um caminho de verdadeira conversão. Abandonemos o egoísmo, o olhar fixo em nós mesmos, e voltemo-nos para a Páscoa de Jesus; façamo-nos próximo dos irmãos e irmãs em dificuldade, partilhando com eles os nossos bens espirituais e materiais. Assim, acolhendo na nossa vida concreta a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, atrairemos também sobre a criação a sua força transformadora.

Vaticano, Festa de São Francisco de Assis, 4 de outubro de 2018.

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