a OBSERVATÓRIO DA PAX: Peritos em paz atentos aos sinais dos tempos

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Peritos em paz atentos aos sinais dos tempos

A mudança de época que a humanidade vive é habitada por aquela que indiquei várias vezes como «uma terceira guerra mundial em pedaços ». Bem sabemos como o receio de um conflito mundial, capaz de destruir a humanidade inteira, marcou o nosso passado recente. São João XXIII dedicou a sua última Encíclica ao tema da paz, dirigindo-a a todos os homens de boa vontade [Carta enc. Pacem in terris]. E como deixar de recordar o apelo sincero lançado por São Paulo VI à Assembleia das Nações Unidas: «Jamais uns contra os outros, nunca mais!» (4 de outubro de 1965)?

Infelizmente, devemos constatar que hoje o mundo ainda está mergulhado num clima de guerra e violência recíproca: esta dolorosa realidade não só exige que mantenhamos vivo o apelo à paz, mas quase nos obriga a colocar-nos interrogações decisivas.

Por que num mundo onde a globalização derrubou tantas fronteiras, onde todos — diz-se — estamos interligados, ainda se continua a praticar violência nas relações entre os indivíduos e as comunidades?

Por que quem é diferente de nós muitas vezes nos assusta, de tal forma que tomamos uma atitude de defesa e suspeita que demasiadas vezes se torna agressão hostil?

Por que os governos dos Estados julgam que mostrar a própria força, até com atos de guerra, pode conferir- lhes maior credibilidade aos olhos dos seus cidadãos e aumentar o consenso de que gozam?

A estas e a outras perguntas não se pode responder de maneira genérica e apressada. É necessário um compromisso de estudo, é preciso investir também a nível da pesquisa científica e da formação das novas gerações. Foi por estes motivos que considerei necessário instituir na Pontifícia Universidade Lateranense um Ciclo de estudos sobre Ciências da paz, a partir da convicção de que a Igreja é chamada a empenhar-se «na solução de problemas que afetam a paz, a concórdia, o meio ambiente, a defesa da vida, os direitos humanos e civis» [Exort. ap. Evangelii gaudium, 65].

Neste compromisso «desempenha um papel central o mundo universitário, lugar símbolo daquele humanismo integral que tem continuamente necessidade de ser renovado e enriquecido, para que saiba produzir uma corajosa renovação cultural que o momento atual exige. Este desafio interpela inclusive a Igreja que, com a sua rede mundial de Universidades eclesiásticas, pode “oferecer o decisivo contributo de fermento, sal e luz do Evangelho de Jesus Cristo e da Tradição viva da Igreja, sempre aberta a novos cenários e propostas”, como recordei recentemente, reformando o ordenamento dos estudos académicos nas Instituições eclesiásticas [Cf. Const. ap. Veritatis gaudium, 2]. Sem dúvida, isto não significa alterar o sentido institucional e as tradições consolidadas das nossas realidades académicas mas, pelo contrário, orientar a sua função na perspetiva de uma Igreja mais acentuadamente “em saída” e missionária. Com efeito, é possível enfrentar os desafios do mundo contemporâneo com uma capacidade de resposta adequada nos conteúdos e compatível na linguagem, antes de tudo dirigindo-se às novas gerações» [Carta ao Cardeal De Donatis, por ocasião da instituição do Curso de estudos sobre “Ciências da Paz”, 12 de novembro de 2018].

[...]

Gostaria de realçar que um bom pacificador deve ser capaz de amadurecer um olhar sobre o mundo e a história, que não caia num «“excesso de diagnóstico”, que nem sempre é acompanhado por propostas resolutivas e realmente aplicáveis» [Exort. ap. Evangelii gaudium, 50]. Com efeito, trata-se de ir além de uma abordagem puramente sociológica, que tenha a pretensão de abranger toda a realidade de uma forma neutra e assética. Quem deseja tornar-se especialista em Ciências da Paz tem necessidade de aprender a estar atento aos sinais dos tempos: o gosto pela investigação científica e pelo estudo deve ser acompanhado por um coração capaz de compartilhar «as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje» [Conc. Ecum. Vat. II, Const. Gaudium et spes, 1], a fim de saber fazer um verdadeiro discernimento evangélico.

Precisamos realmente de homens e mulheres bem preparados, dotados de todos os instrumentos necessários para ler e interpretar as dinâmicas sociais, económicas e políticas do nosso tempo. Comprometer-se nestes percursos de formação poderá ser uma válida ajuda para muitos jovens descobrirem que «a vocação laical é, antes de mais nada, a caridade na família, a caridade social e a caridade política: é um compromisso concreto nascido da fé para a construção de uma sociedade nova, é viver no meio do mundo e da sociedade para evangelizar as suas diversas instâncias, fazer crescer a paz, a convivência, a justiça, os direitos humanos, a misericórdia, e assim estender o Reino de Deus no mundo» [Exort. ap. pós-sinodal Christus vivit, 168].

Papa Francisco
Prefácio ao livro «Per un sapere della pace» (“Por um saber da paz”), publicado pela Libreria editrice vaticana (Cidade do Vaticano, 2020, 124 páginas)

Fonte: L'Osservatore Romano, Edição Semanal em Português, terça-feira 22 de setembro de 2020, p. 7

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